O comprometedor Código Civil
O nosso sistema legal não está preparado para um cenário em que o crescimento do (sobre)endividamento das famílias portuguesas se cruze com aumentos sensíveis das taxas de juro. Desde logo, não está preparada a lei substantiva, já que o Código Civil, trave-mestra do ordenamento jurídico e normativo essencial na consideração económica das pessoas e famílias, datando de 1966, está hoje muito desfasado da realidade, profundamente transformada nos últimos 30 anos com o advento da democracia económica.
Elucidativamente, há escassos 20 anos o sistema bancário concentrava o crédito nas empresas e olhava as pessoas e as famílias como meros depositantes e aforradores. Esse foi o tempo em que a noção vulgar de riqueza tinha uma projecção eminentemente económica, assentando em ideias tradicionais de acumulação patrimonial, virada para o investimento duradouro em bens de raiz, como a propriedade da terra, ou para as aplicações de longo prazo. Esse foi também o tempo em que as famílias, com rendimentos muito inferiores aos actuais, poupavam boa parte dos seus ganhos.
Por contraste, hoje, com rendimentos bem mais elevados, já não há poupança alguma. A noção vulgar de riqueza é agora radicalmente diferente, tem uma feição eminentemente financeira, medindo-se pela capacidade de acesso imediato à fruição de um conjunto de bens, como os automóveis, ou a um conjunto de serviços, como as viagens turísticas. A evolução para este novo padrão está indissociavelmente ligada à popularização do crédito, que viabilizou financeiramente o uso e a posse de bens até então economicamente inacessíveis para a maioria das pessoas.
A possibilidade de dispor de tais bens - e, assim, também a maior qualidade de vida - é aferida, singelamente, pela capacidade de a tesouraria doméstica (ainda) encaixar o encargo com mais uma prestação regular.Mas, além da imaterialidade dos serviços, porque tais bens nem chegam a entrar formalmente na propriedade do devedor - sendo-lhe apenas confiada a sua posse - ou são onerados por garantias especiais, a larga maioria dos portugueses (já) não tem hoje (ou até nunca chegou a ter) o património próprio que, como reza o Código Civil, deve ser executado para responder pelas suas dívidas.
Donde, o paradigma subjacente ao que está escrito no Código Civil já nem sequer existe. Mas, muito pior do que ser uma disciplina jurídica meramente nominal e inútil, a ilusão em que aquele se converteu veio gerar uma grave distorção legal, por continuar a impor ao sistema judicial que, através das acções executivas, execute o património das pessoas, procurando, pois, estupidamente, um resultado impossível. Ora, faz aqui falta uma revolução controlada, certamente preferível a uma ruptura descontrolada.
ver in
http://dn.sapo.pt/2006/06/08/economia/o_comprometedor_codigo_civil.html
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home